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A desmaterialização do digital e as estantes vazias

Quinta-feira, 26.05.16

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Vivemos tempos confusos por estes dias não só na política. Acho que podemos afirmar que experimentamos quase diariamente progressos tecnológicos que alteram de sobremaneira o nosso modo de vida e a percepção da realidade. A sofisticação da computação, a era digital na internet de banda larga, a desmaterialização da informação, a vertiginosa sensação de protagonismo e liberdade por via da auto-edição nas redes sociais, colocam-nos desafios e incógnitas que não deveriamos subestimar. Pela minha parte, o meu profundo apego aos processos analógicos de registo de informação, como o livro, o jornal em papel, a gravação sonora em vinil e noutros suportes físicos, não me impediu de nos últimos 30 anos acompanhar com fascínio a evolução na tecnologia que aqui nos trouxe, pelo que julgo que isso me concede alguma imparcialidade na abordagem que aqui pretendo fazer ao fenómeno da “estante vazia”. 

Se até há bem pouco tempo, a análise duma estante da casa de alguém nos daria impressões precisas sobre o seu perfil sociocultural, na linha do “diz-me o que lês, dir-te-ei quem és”, a tendência cada vez mais consolidada para a desmaterialização de bens culturais como o livro e o disco em informação digital invalidam hoje em dia essa forma de interpretação: chamemos-lhe o fenómeno das “estantes vazias” que no meu entendimento contêm outras ameaças bem menos fúteis do que essa. Se é verdade que na actualidade um pequeno dispositivo pode conter em si uma grande biblioteca com toda a sorte de obras literárias, além de intermináveis horas de registos  musicais de toda o género com razoável qualidade na reprodução, o facto é que esta forma de consumo consolidou uma relação, já de si pessoal, numa dinâmica atomizadora da nossa sociedade - as pessoas não ficaram mais livres, apenas mais sós e desorientadas nas suas escolhas.
Daí que as prateleiras vazias, fruto duma mudança radical no consumo destes bens (cujo valor de facto reside no conteúdo e não no suporte), signifiquem uma quebra numa antiga tradição em que essa informação era legada graças à sua forma física. Ela estava disponível e palpável nos diversos ambientes em que todos crescemos e formámos a nossa personalidade. Por sorte minha cresci e desenvolvi-me rodeado de livros, jornais e revistas, que folheava atraido pela curiosidade, tomando assim contacto com realidades improváveis; já para não falar da muito boa música, cujo manuseamento dos discos (com capas atraentes e informativas) e a sua audição mais ou menos voluntária (o gira-discos ecoava pela casa fora) me influenciou o gosto e sofisticação de ouvinte.

Foi assim que os meus filhos cresceram, também eles rodeados de estantes cheias, discos, livros e jornais entreabertos que usufruíram nos espaços comuns da casa onde também partilhámos filmes, alguns dos quais estou certo permanecerão sempre como referência para eles. Como se reproduzirá este processo de transmissão de valores (porque é disso que se trata) nestes tempos de individualismo radical dos auscultadores e do ‘smartphone’ em que cada um constrói a sua biblioteca ou playlist – a lógica da ‘playlist’ no streaming digital é em si um tratado - num aparelho de bolso é para mim um enigma.

É por isto que eu receio que o fenómeno das estantes vazias deixará de denunciar uma pobreza cultural para significar um retrocesso civilizacional. Ou estarei enganado?

 

Crónica inspirada no artigo "Our (Bare) Shelves, Our Selves" de Teddy Wayne 

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publicado por João Távora às 21:26





Editorial

Gostamos da palavra propaganda, termo velhinho que, simplificando, antigamente definia sem complexos o conjunto de técnicas para publicitar uma ideia. Com o tempo, o termo muito utilizado pelos políticos numa conturbada fase do Século XX resistiu mal ao desgaste pelo sentido que assim se lhe deturpou: como se, realçar as virtudes próprias ou dum objecto, não fosse ambição e atitude legítimas, praticada por qualquer ser humano psicologicamente equilibrado e socialmente integrado. Ler mais

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